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Francisco Braga, um compositor brasileiro e seu estilo

21/11/2019 - Isaac Chueke

Este artigo, baseado num trabalho mais amplo1, visa apresentar de forma sucinta algumas das principais características estilísticas composicionais do brasileiro Francisco Braga (1868-1945). Mediante o exame de uma longa carreira, construída nos mais variados contextos culturais, tivemos condições de melhor apreender o significado da importância de sua obra, particularmente num momento em que a música brasileira buscava afirmar-se tanto no plano nacional quanto internacional.

Isaac Chueke2 - chuekemusic@hotmail.com

 

 

Francisco Braga (1868-1945) foi uma personalidade musical marcante em seu tempo: compositor, regente, professor, ocupou diversas e importantes funções no cenário musical brasileiro, que assistiu a transformações fundamentais a partir do início do século XX. Não obstante sua permanência de dez anos na Europa, permanece ainda praticamente desconhecido no exterior assim como junto às novas gerações de músicos no seu país natal.

Neste artigo, propomos apresentar uma síntese do pensamento e do estilo musical de Francisco Braga. Observamos, na formação musical deste compositor brasileiro, dois personagens de uma importância capital, um brasileiro, outro francês.

Incialmente, Carlos de Mesquita (1864-1953), antigo discípulo de Franck, Durand e Massenet. Compositor e regente, pioneiro no desenvolvimento da música orquestral no Rio de Janeiro no final do século XIX. Mesquita orientou Braga por ocasião de seus estudos no Conservatório Imperial do Rio de Janeiro, tendo sido igualmente o responsável pela estréia da Fantasia-Abertura, primeira incursão do jovem compositor na música sinfônica. Muito provavelmente terá sido ele a aconselhá-lo a se aperfeiçoar na Europa, como era comum na época, e de especificamente escolher a França, para um trabalho sob a tutela de Jules Massenet, fato mais do que lógico se considerarmos que o próprio Mesquita havia sido seu aluno no Conservatório de Paris.

De outro lado, podemos especular se Carlos de Mesquita não teria também sido um modelo, pela sua realização dos Concertos Populares no Rio, suscetível de despertar em Braga o interesse pela regência quando de sua volta ao Brasil, após dez anos de ausência. Francisco Braga se exercitará notadamente nesta condição, à frente da Sociedade de Concertos Sinfônicos.

O trecho a seguir, extraído de uma carta3 de Braga a Mesquita, não deixa dúvidas quanto aos laços ligando os dois músicos:

Ilustre Maestro Carlos de Mesquita.
Caríssimo mestre e amigo.
Que prazer em receber uma carta sua, com notícias do velho amigo e dedicado mestre, a quem devo o entusiasmo que sempre conservei pelas coisas de arte! Quanta reminiscência me acode ao espírito, apenas em evocar o seu nome e ver a sua curiosa caligrafia! Rejuvenesci 40 anos, sob a magia da recordação: fecho os olhos e faço uma viagem retrospectiva, e sonho...e vejo tudo maravilhoso! [...] Venha, caro amigo, e será recebido com as honras a que tem direito por seu valor artístico, pelos inestimáveis serviços que prestou à música sinfônica, criando os saudosos Concertos Populares que grande contribuição trouxeram ao desenvolvimento da música séria em nosso país...

A outra personalidade fundamental na trajetória de Francisco Braga, como antecipado acima, foi Jules Massenet. Sua influência é mais que transparente no estilo de escrita do compositor brasileiro, o que verificamos tanto pelo exame minucioso da biografia de Braga quanto pelas análises musicais que fizemos de algumas de suas principais obras orquestrais.

Ressaltamos uma diferença importante entre o mestre francês e seu discípulo, esta dizendo respeito ao talento dramático. Presente em Massenet de modo essencial, bem menos no caso de Braga, devemos primeiramente compreender que não poderíamos imaginar o compositor francês de outro modo, tantas foram as obras legadas neste campo, não obstante o fato de Massenet também ter composto obras puramente orquestrais. Se podemos facilmente admitir a existência de temperamentos voltados especificamente para esta vocação do lírico, nesta categoria, junto com Massenet, nos vindo imediatamente à lembrança os nomes de Mozart, Verdi, Gomes e Wagner, acrescentaríamos que, historicamente falando, sempre foram muitas as dificuldades de se compor uma ópera brasileira, devido à necessidade da superação de uma série de obstáculos, incluindo-se entre estes o tabu de se cantar em português e os problemas bem conhecidos de uma parca infraestrutura em termos de produção.

Reafirmando, portanto, nosso propósito de introduzir o universo sonoro de Francisco Braga, procederemos agora à análise das características principais de seu estilo, particularmente o orquestral, que com o decorrer dos anos sempre demonstrou uma perfeita coerência, perfeitamente afinada aliás com a figura do homem e do artista.

O plano formal de boa parte de suas obras adota comumente ora a forma bipartite ABA ora a tripartite ABACA. Percebemos nas composições sinfônicas deste compositor o privilégio concedido ao desenvolvimento de motivos temáticos que possam enquadrar-se num movimento contínuo da música; com a ausência de uma delimitação clara entre as diferentes seções, observamos ademais a superposição de ideias apresentadas em outro momento. Frequentemente, as peças são desprovidas de uma introdução enquanto as recapitulações não oferecem variações consideráveis, podendo vir acompanhadas ou não de codas. Estas últimas, quando ocorrem, são usualmente breves, sem nenhum tipo de desenvolvimento terminal.

Embora o fato não ocorra amiúde, nota-se uma certa simetria da frase, observados o segmento melódico antecedente e o seu consequente. Mas o que atrai particularmente nossa atenção é o sólido laço entre estas duas partes de uma melodia de Braga: é como se para o compositor tratasse de afirmar uma única ideia, auto-suficiente, forte do começo ao fim.

Novamente, ressaltamos a importância dada por Braga a seu tema inicial. Ideia matriz, motivação primeira e última, geralmente ouvimos o primeiro tema desde o primeiro compasso e, como mencionado, dispensando qualquer introdução; base dos desenvolvimentos a seguir, não estamos distantes da feitura de um tema funcionando como uma espécie de cantus firmus, de modo que contenha em si todas as possibilidades de sua exploração futura em termos contrapontísticos. Não raro o compositor parece fazer uma pergunta, deixando-a assim, solta no ar, antes que sua frase, e consequentemente a harmonia que a acompanha, sejam deliberadamente encaminhadas a uma situação de relativa instabilidade tonal.

A título de exemplo, logo ao iniciar-se Paysage, poema sinfônico datando de 1892, percebemos estar em Ré maior; entretanto, o baixo está propositalmente tacet, dispensado portanto de apresentar qualquer nota e principalmente aquela que mais se esperaria nas circunstâncias, a fundamental. A instabilidade a que nos referimos se afirma claramente nos terceiro e quarto compassos mediante a aparição do acorde de sol com sétima maior; e a importância deste fato é sublinhada tanto pela dinâmica, um crescendo imediatamente seguido de um decrescendo, quanto pela acentuação encontrada no segundo tempo.

Uma diferença importante para nós é que no caso daquelas composições de Braga inspiradas por uma veia popular, uma fórmula melódica apresentada desde os primeiros compassos será reproduzida praticamente inalterada nas outras vozes instrumentais, obviamente excetuando-se transposições ou novas explorações harmônicas. É este trabalho em torno de um material já conhecido que permite ao compositor avançar sua composição.

Muito frequentemente, motivos podem facilmente ser reduzidos a dois compassos. Em Paysage, por exemplo, a partir do terceiro compasso, trata-se tão somente de uma extensão que prepara a suspensão sobre a dominante no quinto compasso. Como expert do contraponto, Braga privilegia na sua escrita os graus conjuntos e observamos sua prática, com gosto, do movimento contrário das vozes. O compositor não dispensa um número importante de notas de passagem assim como de apoggiaturas e seus saltos melódicos, sempre bem calculados, adicionados ao recurso de transposições da melodia (não raramente à oitava superior), constituem para ele a excelente oportunidade de trabalhar um efeito mais dramático das peças. Outra peculiaridade é que no seio de uma melodia cujo caráter primordial é o diatonicismo, não é de todo incomum seu uso de linhas cromáticas, enfeitando sobremaneira a melodia.

O compositor aprecia ainda o retorno na melodia de algumas notas de predileção, com um intuito que nos parece bastante explicito, o de criar ‘pontos âncora’: na sua obra Cauchemar, observamos a importância da utilização tanto do V quanto dos VI e VII. Graus e em Paysage o mesmo ocorre com o III grau.

A respeito da articulação utilizada, seus temas iniciam-se geralmente em legato. Esta escolha naturalmente tendo como corolário o desejo de uma linha bem cantabile, prioridade aplicada na transposição de seus motivos, sejam eles breves ou de maior fôlego, uma exceção a este quesito pode ser feita a passagens dotadas de maior vitalidade rítmica, fato compreensível, um bom exemplo as famosas Variações sobre um tema brasileiro.

Do ponto de vista da harmonia empregada por Francisco Braga, esta nos parece decorrer de um tratamento primordialmente horizontal de sua escrita. Habitualmente seus acordes são triádicos e as harmonias relativamente simples, centralizadas em torno da função I-V-I. O compositor entretanto aparentemente pouco sujeito à ideia de conclusões definitivas representadas pela cadência perfeita – ele as evita e retarda sempre que possível – prefere privilegiar os acordes de subdominante e as cadências interrompidas. Nas nossas análises tivemos a ocasião de observar o apreço de Braga pelos III e VI graus harmônicos e também, ao concluir suas peças, o uso frequente da cadência plagal enquanto os acordes de dominante geralmente encontram-se no estado de segunda ou terceira inversão.

Acabamos de mencionar o III grau harmônico. Em Paysage, o acorde de fá sustenido maior se mostra de grande importância, presente desde o início da obra, e o reencontramos na parte final, com a função de justamente evitar a cadência na tônica. Acrescentaríamos que não apenas as cadências interrompidas de Braga mas igualmente suas modulações são sintomáticas deste apreço pelos graus intermediários antes de um retorno à tonalidade principal. Tal prática não constitui necessariamente motivo de desorientação, tratando-se primordialmente da criação do que chamaríamos do ‘fator inesperado’: podemos citar como exemplo, em Paysage, o trecho encontrado no compasso 20, quando da modulação para si maior (terça do tom principal de sol).

Mencionamos ainda que, e segundo uma técnica bastante comum entre seus contemporâneos, a terça de seu acorde de tônica é muitas vezes suprimida para que a reencontremos mais tarde, atuando como um pivô eficiente no trânsito entre os modos maior e menor.

Sem verdadeiras proezas harmônicas portanto, certos acordes, por serem mais raros, se beneficiam automaticamente de um destaque particular quando de seu surgimento: seções em que há uma enxurrada de acordes de sétima diminuta, apresentados sob forma de sequências harmônicas além de acordes de nona, não raro construídos sobre a tônica.

Encontramos também, com uma relativa frequência, acordes de sexta aumentada. Já o acorde de terça napolitana é bastante menos usado pelo compositor brasileiro (observamos sua aparição no início de Marabá). Quanto aos acordes com a sexta acrescentada (tocada simultaneamente com a quinta do acorde) provêm geralmente, no caso de Braga, do uso deste grau na melodia. Outra técnica utilizada pelo compositor, sempre oriunda de seu contraponto, é a que favorece uma série de suspensões melódicas, com consequencias importantes na harmonia resultante.

Uma mesma harmonia pode, ocasionalmente, demorar-se durante um número importante de compassos: é o caso de uma determinada passagem de Cauchemar onde durante dezesseis compassos ouve-se um único acorde, o de fá sustenido maior.

A enharmonia constitui para Braga um recurso do qual ele certamente se utiliza, mesmo se de modo parcimonioso, numa comparação com seus colegas europeus, compositores franceses e alemães do final do século XIX.

No que diz respeito ao ritmo, vemos facilmente como Braga instaura a fidelidade a um discurso musical o mais fluido possível. Optando por andamentos geralmente moderados, as poucas exceções apenas confirmam a regra, desprezando-se aqui os poucos rallentando e allargando encontrados ao longo das peças.

Suas indicações metronômicas podem verdadeiramente apontar tempos bastante lentos como é o caso da semínima pontuada igual a 46, em Paysage. Outro exemplo é o do Adagio do Episódio Sinfônico. Em Diálogo sonoro ao luar, duo para saxofone e bombardino, encontramos na partitura a inscrição "Vagoroso muito expressivo um tanto rubato" o que, diga-se de passagem, pareceria em ligeira contradição com a semínima igual a 72.

Não é, portanto, comum que os tempos de Braga excedam os Allegretto, motivo pelo qual um Allegro como o encontrado em Cauchemar, com a semínima igual a 184, salta imediatamente à vista.

Suas fórmulas de compasso alternam entre simples e compostos. Um bom exemplo é o de duas obras pertencendo ao mesmo período: em Cauchemar a métrica é a de um simples ternário, enquanto em Paysage trata-se de um 12/8. Ao longo das peças, Braga pode decidir efetuar leves mudanças, o que notamos na seção intermediária do Prelúdio de O Contratador dos diamantes, no qual a métrica muda de um 4/4 para um 2/2. Ao final de Paysage, encontra-se um único compasso 9/8, exceção ao 12/8 presente em toda a partitura, sendo que esta única alteração não afeta verdadeiramente a estrutura rítmica.

Observamos como o compositor aprecia o trabalho com elementos diversos no quesito ritmo, fator fundamental por ocasião da interpretação de sua música, juntamente com a agógica, embora possa não o parecer à primeira vista. Em Paysage tanto o tempo fixado quanto o desenho melódico transmitem um caráter plácido e sensual; entretanto, os acentos dos terceiro e quarto compassos, assim como a fórmula da colcheia seguida da semínima, demonstram certa inquietude e hesitação. Mencionaremos também a entrada dos diversos instrumentos nos tempos fracos.

O uso da síncopa por Braga é interessante. Presente em boa dose na sua obra, sempre elegante e sem necessariamente transmitir traços de uma ansiedade febril, a encontramos desde o período parisiense do compositor. Em Paysage, a ouvimos já nos primeiros compassos, assim como, mais para o fim da obra, na parte dos violinos e das trompas. Torna-se mais enfática nas obras de Braga compostas após seu retorno ao Brasil, em 1900, fato que poderia indicar a vontade de se aproximar de uma estética modernista, que, como sabemos, privilegiava ritmos considerados como emblemáticos da música brasileira.

Por exemplo, em Impressões da Roça, quinteto para flauta, dois oboés e duas clarinetas, encontramos a síncopa em praticamente toda a peça, percorrendo todas as linhas instrumentais. Igualmente, no caso do Lundu, terceiro movimento do Trio, de 1930, verdadeira joia da arte instrumental de Braga.

No Diálogo sonoro ao luar, obra já mencionada, a síncopa está presente desde o terceiro compasso. Mas não podemos deixar de mencionar que as características da seresta, tão claras nesta peça, devem também ser creditadas às semicolcheias presentes na introdução.

A respeito da variedade rítmica encontrada na escrita de Braga, a página que finaliza Cauchemar é bastante ilustrativa, de uma admirável beleza: da pluma do compositor surgem sêxtuplas, tercinas, colcheias, notas sincopadas, o todo reforçado por acentos regulares em cada tempo do compasso.

Em conclusão, esperamos que mediante estas breves indicações do estilo composicional de Francisco Braga tenhamos estimulado a (re)descoberta e a valorização de sua obra, certamente inscrita entre os legados mais importantes da música brasileira de concerto.

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(1) CHUEKE, Isaac. Francisco Braga, compositeur brésilien: la vie et l’œuvre. Tese (Doutorado) Universidade de Paris-Sorbonne (Paris IV), jan. 2011. Os exemplos musicais mencionados neste artigo originam-se da edição de algumas das principais partituras orquestrais de Braga, para fins da tese, trabalhada a partir de material encontrado na Divisão de Música e Arquivo Sonoro (DIMAS) da Biblioteca Nacional no Rio de Janeiro e na Biblioteca Alberto Nepomuceno (BAN) da Escola de Música da UFRJ.

(2) Professor Doutor da Escola de Música e Belas Artes do Paraná - Embap

(3) SANTOS, Iza Queiroz. Francisco Braga. Rio de Janeiro, Ministério das Relações Exteriores, Serviço de Publicações, 1942, p. 17-18. A carta data de 27 de abril de 1932.