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A Missa de Santa Cecília

01/01/1984 - Cleofe Person de Mattos

INTRODUÇÃO

período em que o padre José Maurício Nunes Garcia enriquece a sua bagagem com a composição de missas abrange 29 anos: 1797 a 1826. Donde se vê que 14 anos haviam passado desde sua primeira composição quando o futuro mestre-de-capela da Sé coloca, pela primeira vez, o seu talento a serviço de tão importante cerimônia religiosa. Relacionadas as missas encontradas in specie, acrescidas das que são citadas em antigos catálogos da Capela Real (mais tarde imperial) e ainda aquelas que a memória histórica conservou, cerca de 35 títulos (excluídas as missas fúnebres e as de Semana Santa), podem ser mencionados. Esses 35 títulos relacionados a seguir não correspondem, precisamente, às missas existentes. Algumas extraviaram-se, outras foram recopiadas ou submetidas a arranjos no fim do século XIX, e receberam nova titulação. Sem dúvida, títulos citados nos antigos catálogos podem corresponder às missas conhecidas, mas não houve dado suficiente de identificação entre o título original e o das cópias que sobreviveram.

Outras missas são citadas em acontecimentos históricos nos quais o padre José Maurício dirigiu a obra. Atribuir-lhe a autoria, dadas as circunstâncias que envolviam a Real Capela, é mais do que simples presunção, embora delas não se possa adiantar nem mesmo o título. Não só as missas citadas em relações antigas são dificilmente identificáveis; também o são as referências conservadas pela tradição histórica. Servem de exemplo as que vão enunciadas:

  • Missa a grande orquestra (composta até 1811, data da "relação de próprio punho"). Pode ser a Missa de N. Sra. a 8 de dezembro (1810) ou a missa composta "para o aniversário da chegada de D. João VI" (7 de março) em 1811.
  • 14 missas a órgão. Também arroladas na "relação de próprio punho", corresponderão aos títulos citados no catálogo de J. J. Maciel. Este enumera precisamente 14 missas com acompanhamento de órgão; inclui, porém, três de 1820, que estariam fora dos limites cronológicos da "relação" (1811).
  • Missa dirigida por José Maurício em 21.1.1816, em regozijo pela elevação do Brasil a Reino Unido, informa Luiz Gonçalves dos Santos, in Memórias para servir à história do reino do Brasil, Lisboa, 1825, p.474. O autor faz referências à "melhor e escolhida música, tanto vocal como instrumental, regida pelo mestre da Capela Real o r.p. José Maurício Nunes".
  • Missa dirigida por José Maurício em 3.5.1819 na cerimônia promovida pelo Senado da Câmara ao ensejo do nascimento da primogênita de D. Pedro I (idem, p. 725).
  • Missa da Degolação de S. João Batista.

As dúvidas não retiram a validade no relacionar os títulos das missas que de alguma forma são conhecidas: em autógrafos, cópias antigas, assim como as que vêm citadas nos antigos catálogos.

O MANUSCRITO

Missa com gr. Orquestra Composta pelo Pe. José Mauricio Nunes Garcia no Anno de 1826

Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (RJ); partitura autógrafa 278 páginas (Arq. 2.2.10)

A surpresa inicial é o próprio título - lançado ao alto da primeira página - que não corresponde àquele sob o qual passou à história. A explicação decorre da origem da encomenda, feita pela Irmandade de Santa Cecília para a festa da padroeira, no dia 22 de novembro de 1826. O título que se tradicionalizou consagra, a um tempo, o sentido da comemoração a que se destinara, bem como a festividade que marcou sua primeira apresentação: o dia de santa Cecília. O Credo tem título próprio, lançado à página 203:

Credo com gde. orquestra - Por José Mauricio N.G. Anno de 1826.

O manuscrito foi doado ao Instituto Histórico pelo Dr. Nunes Garcia, filho do compositor. A carta - com data de 1º de dezembro de 1853 - com a qual encaminhou os originais da Missa, elucida vários aspectos desse momento vivido pelo compositor. Segue transcrição dos trechos que dizem respeito à obra:

"Ilmo. Snr. Dr. Secretario do Instituto Histórico. Remetendo a V.S.ª o autógrafo das duas últimas partituras de meu pai, eq. destinava há muito oferecer para o Arquivo do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, desde deu-me ele a honra de aceitar por seu sócio correspondente cumpre q. eu dê as razões aq. tive de atender para isso. ...  ... Na impossibilidade de coligir-se hoje mesmo o q. mais vulto faz do q. produziu como contrapontista o prim. Mestre de Capela da Corte do Brasil, e sendo certo q'esse gênio musical compôs o autógrafo em questão em menos de 30 dias, mto crente de q. era ele e como mesmo disse a seus amigos "a sua última composição” parece q. em meu favor hoje, neste momento, nunca reservando como sua propriedade as partituras q. escrevia, sempre a pedido, estas q. folgo de poder oferecer, são com efeito as ultimas q. elle escreveu; são as únicas que amou guardar para dar-me pouco antes da sua morte!

Parece q. se ufanava tanto e meu mestre, pai e amigo da produção harmônica q.me ocupa, q.ao dar-m'a, lembro-me q. proferira ele estas palavras "guarda isso, q. te poderá servir um dia'"... É verdade... nesse tempo frequentava eu o 6º ano da antiga Academia Médico-Cirúrgica; e hoje? ... na dadiva dele está, tudo o q., espero q. o Instituto me aceite...

Consta o livro q. ofereço em suma, de uma Missa e Credo quase inéditos, feitas expressamente para a festa de Sta. Cecilia, e a pedido dos Professores Geraldo Ignacio Pereira e Lino Jozé Nunes, em 1826. Foram cantadas apenas uma vez nesse ano, sob a batuta ou regência do seu autor, e numa segunda vez pouco depois da morte dele. E por q. hoje as composições sacras pedem reforma; hoje q. os compositores sacros nacionais são raros, a ultima Missa e Credo do Pe. Me. Jose Mauricio q. digo são verdadeiros tipos e mal eu podia guardar, é só nos Arquivos do Instituto Histórico Geográfico Brasileiro e quando me considero semimorto, q. me apraz ver esses originais.

Digne-me V. Srª atendendo-me pelo exposto, de apresentar em sessão, os protestos de intensa Consideração pelo Instituto ... do seu Consocio amigo Crº O Dr. José Mauricio Nunes Garcia Junior.

Rio, 1º de Dezembro de 1853."

A disposição dos instrumentos, na primeira página, obedece à seguinte ordem: violino I, violino II, violetas I e II, flauta I, flauta II, trompas I e II, clarins I e II, soprano, contralto, tenor, baixo, violoncelos e contrabaixos.

Nas 278 páginas do volume estão incluídas 21 páginas com os acréscimos instrumentais - organizados em particella - que representam, na obra, a reformulação da orquestração original, trabalho de que se ocupou o padre José Maurício ao longo dos quatro anos que sobreviveu à composição da missa (ver Figura 1). São instrumentos constantes desses acréscimos: oboés I e II; fagotes I e II; trombones (3): contralto, tenor e baixo; tímpano.

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O volume oferece a seguinte sequência:

p. 1-183: Kyrie e Glória

p. 48, 148 e 184: em branco

p. 185-201: "Acréscimos" à orquestra da Missa (Kyrie e Glória)

p. 202: em branco

p. 203-273: Credo, Sanctus, Benedictus e Agnus Dei

p. 274: em branco

p. 275-278: "Acréscimos" à orquestra do Credo.

Alguns trechos da Missa já vêm reorquestrados na partitura, o que quer dizer, já incluem instrumentos constantes dos acréscimos: a introdução instrumental do Gloria (p. 14-17), o Laudamus (p. 33-47), o Quoniam (p. 121-147), o Et incarnatus (p. 222-224), o Crucifixus (p. 225-230), Benedictus (p. 263) e Agnus Dei (p. 263-273). O Domine Deus (p.61-88) não utilizou instrumental dos acréscimos.

No Laudamus somente os oboés foram acrescentados, e estão grafados na partitura. O Qui sedes limita aos oboés e fagotes o acréscimo à partitura. No Qui tollis, além dos acréscimos instrumentais: oboés, fagotes e clarins o compositor incluiu uma parte coral, a quatro vozes, não prevista na partitura. Assim faz reviver uma das suas constâncias no tratamento do trecho: o concertante com tenor solista. Escrita à parte, entre os acréscimos instrumentais, faz crer não haja sido assim executado em 1826. No Gratias como no Cum Sancto Spiritu, no Credo como no Sanctus, todo o instrumental dos acréscimos amplia a orquestração original.

Uma litografia do compositor (desenho do Dr. Nunes Garcia, litografado por Heaton e Rensburg) segue a folha de guarda. Registros assinalados: carimbo do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, localização de obras e do microfilme no arquivo.

Nomes de vários solistas estão lançados na partitura. O Laudamus é o único que não o indica[1]. No Domine Deus (Quatuor) vêm citados: o Sr. Augusto2[2] (soprano); o Sr. Luiz Gabriel[3] (contralto); o Sr. Cândido[4] (tenor); e o Sr. Apolinário[5] (baixo). No Qui tollis atuou o tenor Gabriel Fernandes da Trindade[6] e no Quoniam o mais famoso cantante brasileiro, o baixo João dos Reis Pereira [7].

José Maurício colocou muita sutileza dinâmica a serviço de sua última obra, sobretudo nos trechos do Kyrie e Gloria.

Apesar dos momentos de profunda interiorização do Et incarnatus e do Crucifixus, o Credo confirma, até certo ponto, o que escreveu o Dr. Nunes Garcia: o ter sido a obra composta em pouco tempo. Mesmo não aceitando como verdadeira a informação de que o trabalho fora terminado "em menos de 30 dias" - prazo inacreditavelmente curto, quando se consideram, não só os momentos extraordinários da obra, mas as próprias proporções da Missa, são evidentes os sinais de preocupação com o prazo para entrega da partitura. Os indícios revelam-se, não só em pequenos cochilos: acidentes sem as notas sobre as quais deve atuar; troca de pauta correspondente ao instrumento, na partitura. Depõe no mesmo sentido a repetição de motivos, no Credo.

Poderá haver outra intenção. Na notação que, apesar de apressada, é minuciosa, o traçado das ligaduras é exemplo marcante. No Et incarnatus (para quarteto solista) sucedem-se as frases demarcadas por ligaduras intermitentes, como que obedecendo à intenção de uma linha musical continuada:

Dúvidas mais frequentes ocorrem em torno da indicação de staccati. Seriam pontos que a pressa alongara - talvez não intencionalmente - e os transformara em pequenas barras horizontais, tornando-as confundíveis com tenutas.

Os compassos 56-57 do Et resurrexit oferecem exemplo do que foi dito, apesar do insofismável caráter de staccato:

Por outro lado, no Qui sedes (texto: Miserere, compassos 50-54), apesar da notação idêntica à do exemplo anterior, não encontra no staccato a articulação adequada. Seria, antes, um meio staccato:

Deve-se admitir, ainda, que a pressa na elaboração da partitura explique também outras indicações não isentas de dúvida, no manuscrito. Não só a imprecisão no traçado das ligaduras como a escassa diferenciação gráfica nas proporções dos sinais de acento ou de decrescente. Fora do contexto em que atuam, nem sempre é fácil decidir entre os dois sinais gráficos o objetivo visado pelo compositor, sem o perigo da arbitrariedade. E óbvio condicionar interpretação dos sinais enquadrando-os dentro do contexto. A impossibilidade de reproduzir todos esses casos, ou mesmo de enumerá-los - uma vez que, em última análise cabe ao regente decidir por uma ou outra articulação -recomenda seja proporcionada a visão de casos ilustrativos com a multiplicação de exemplos reproduzidos do próprio autógrafo.

Não raro, aos trechos em pizzicati vêm aplicados sinais de staccati, Na forma do costume, em pontos presumivelmente alongados pela pressa. As mesmas indicações de pizzicati aplicam-se a figuras de diferenciado valor, como se pode verificar, aplicados em mínimas, no compasso 102 do Confiteor.

Algumas palavras devem ser ditas a respeito do material em cópia da Missa de Santa Cecília, levantado em épocas diversas por diferentes copistas: partituras e partes avulsas.

Em volumes separados, duas partituras estão arquivadas na Escola de Música (UFRJ), ambas levantadas em 1853. A 'missa' (Kyrie e Glória) pelo copista Sr. Geraldo, e o Credo, Sanctus, Benedictus e Agnus Dei, por Antônio Motta. O Credo está lançado no Livro I de Registro da biblioteca[8], à página 48, sob número 1852-1472, com proveniência assinalada: o Imperial Conservatório de Música. É provável que o volume da "missa" tivesse vindo junto; o registro seria o mesmo. A incerteza explica o registro do Kyrie e Glória - 30.121 -, feito em fase bem posterior. Os dois volumes trazem indicação comum: "Propriedade inalienável do Dr. Nunes Garcia", ou "Pertence ao Dr. Garcia." Torna-se clara, então, a proveniência mediata e a origem dos manuscritos, que abrangem todo o instrumental da partitura autógrafa e os 'acréscimos'. Mas acusam novidade no título que lhe é aposto: Missa festiva.

De qualquer modo, é a primeira vez que se vê aplicada à obra outro título que não o de Missa com grande orquestra que lhe dera o compositor – na verdade, título inexpressivo e comum ao de outras missas - nem o de santa Cecilia, que a história conservou. Sem dúvida teria sido ocasião ‘festiva’, a da sua primeira execução, mas vinculada a esse título somente nessa cópia, e posteriormente (1898). Com base nessas cópias -"propriedade inalienável do Dr. Garcia" - fica explicada outra cópia da mesma obra, pertencente à Irmandade do Santíssimo Sacramento da Candelária, também sob o nome de Missa festiva, em dois volumes e igualmente copiada por duas mãos diferentes.

A Missa (Kyrie e Glória), em cópia de Leopoldo Miguez, não oferece problemas. O mesmo não pode ser dito do Credo - cópia ou rascunho provável de Alberto Nepomuceno - que tem alterações várias transferidas às partes vocais impressas na Alemanha[9] no fim do século (julho de 1898), quando se preparava a obra para a inauguração do novo templo da Candelária com o título de Missa festiva. Sob a direção de Alberto Nepomuceno foi então ouvida, mas não identificada à sempre citada Missa de santa Cecilia, cujos manuscritos estariam, no dizer do visconde de Taunay, extraviados[10]. Seria a época em que se aplicou o título de Missa festiva na cópia de 1853. Felizmente, algumas décadas mais tarde, o funcionário Freitinhas, já informado do formato do volume, localizava no porão do antigo Silogeu (sede do IHGB) o precioso volume.

O material guardado em partes avulsas na Escola de Música - muito variado, seja como trabalho de copista, da época, e consequentemente como valor documental - está enfeixado, indiscriminadamente, sob dois registros: 4114-3070 (Missa) e 4135-3091 (Credo).

De algumas partes se pode crer hajam sido utilizadas na primeira execução da obra. São partes em papel poroso, de grande formato, de cor clara e pauta castanha. Generalizadamente não trazem título - apenas a indicação: Missa, ou Credo - sem data e sem nome de autor. Algumas trazem na capa (ao alto e à direita), nomes ou referências que justificam a suspeição de datarem de 1826: Policarpo, J.R.P. (João dos Reis Pereira). Uma parte de clarinete parece revelar os processos de que tiveram que lançar mão para levantar tão grande material, e registra a palavra: "gratis". Mais importante, em algumas partes, são anotações - aparente e provavelmente autógrafas.

Esse material em partes avulsas está misturado, como se disse, com partes levantadas em outra época. Entre essas partes (oboé, soprano) uma vez mais a interferência de Francisco Manoel da Silva se faz sentir em obra de José Maurício: o Gratias e o Qui sedes tiveram os trechos originais substituídos por outros, em papel colado sobre a cópia primitiva. Com a letra do autor do Hino Nacional.

A OBRA

Missa de santa Cecilia. A última obra. A encomenda, partida da Irmandade de Santa Cecília que reunia, em grande número, amigos e antigos alunos, encontrava o compositor já no fim da vida, sofrido e desgastado pela pouca saúde, pelas dificuldades e por muita amargura. Sem duvida trouxe-lhe alento o convite para compor. Se a obra, sob vários aspectos, pode acusar sinais da pressa com que foi composta, não é menos evidente que o convite galvanizou as forças de que dispunha o compositor e do qual resultou um todo que, sob muitos aspectos pode ser apreciado como das mais afirmativas realizações de sua criação, não só em termos de harmonias escolhidas e melodias expressivas ou no gosto de instrumentação, como na força de sua estrutura musical, e seu conteúdo.

Composta dentro de um esquema instrumental posteriormente modificado no decorrer dos quatro anos que sobreviveu à obra, pode-se concluir que sua primeira audição dirigida pelo próprio padre José Maurício, no mesmo ano de sua composição - não corresponderia in totum aos manuscritos que hoje conhecemos.

Como classificar a obra, e como colocar o compositor diante dela? José Maurício escreveu sempre para cerimônias religiosas. Muitas obras suas não escapam, por isso, ao aspecto funcional que lhes dificulta a vida artística. Essas considerações afloram diante das proporções da Missa de santa Cecilia, com cerca de hora e meia de duração. O que não era surpreendente à época, uma vez que a cerimônia religiosa se aproximava de um espetáculo musical. As missas, matinas e ofícios fúnebres que José Maurício compôs tiveram sempre uma cerimônia religiosa em vista. Se a obra contém profanidade, deve-se reconhecer que o sinal dos tempos o atingira. Ele assimilara o sinfonismo, a virtuosidade dos castratti, efeitos peculiares musica profana. A posição do compositor brasileiro não é semelhante à de Haendel, que compõe música religiosa vivendo na mundanidade e, embora conferindo à sua obra religiosa um profundo acento religioso, dá-lhe vida fora do contexto, como é o caso do Messias, desvinculado de qualquer cerimônia religiosa. Espelho ou síntese do que representaram os 43 anos de sua vida ativa como compositor (1783-1826) é o que sugere a apreciação global - talvez imaginativa - de sua última obra.

Síntese dos momentos de brilho tão bem revividos no Kyrie e Glória, profunda emoção que o desfilar de motivos musicais conhecidos em outra época acentua, tanto quanto o seu dilacerante Et incarnatus, ou o grave e profundo Crucifixus, a Missa de santa Cecilia leva o ouvinte de hoje a participar de fases sucessivas de evocação. Motivos do seu longínquo passado de compositor vitorioso e sem par no meio que o cercava, vêm marcar sua presença nos diferentes trechos da Missa:

  • o movimento cromático em oitavas dos clarinetes na Sinfonia fúnebre de 1790 que perpassa, como uma sombra grave e misteriosa, mas suave, no Agnus Dei;
  • reaparece também o traçado melódico do Libera me de 1799, que o perseguiu em momentos diversos de sua triação, em missas, mementos, e em outros gêneros. Surge no Agnus Dei desta Missa, entrecortado pelo motivo do clarinete, elemento familiar de ligação melódica na linguagem de José Maurício;
  • -até o motivo em notas rebatidas do Kyrie confirma uma das constâncias que José Maurício associa em quase todas as missas em mi bemol, e que se renova em várias épocas;
  • com toda sua beleza nova, é obra em que confluem reminiscências de obras produzidas em fase distante, na sua vida de criador, como o motivo do Gloria in excelsis já tentado na Missa mimosa (1820), e na Missa abreviada (1823) e igualmente na Missa de Nossa Senhora do Carmo (1818);
  • também o belo motivo do Cum Sancto Spiritu não é inteiramente novo em sua pena. Se se acompanhar as transformações por que passou, não será difícil concordar que é em 1826 que o compositor atinge o momento de sublimação, a plenitude na expressão desse motivo já utilizado na Missa abreviada de 1823, como já o fora tentada por Marcos Portugal;
  • muito utilizado, nesta obra - e com conotações várias de apelo, doçura, e exaltação - é muitas outras obras, não só o Laudate pueri de 1813 como o solo de soprano das Segundas matinas de santa Cecilia, ou motivo inicial do sexteto da Missa de N.Sra. da Conceição. Mais objetivo, por assim dizer, no enfoque técnico que dá, na Missa de 1810, do que o comovido canto diante da grandeza do ser a quem o compositor dirige seu louvor, no Quoniam, e o faz ouvir em solo, na voz do baixo.

Solene, majestoso, o Kyrie da Missa de santa Cecilia é pórtico adequado à grandeza da obra. Instrumentado com grandiosidade, é dos bons momentos da Missa. Sem interrupção prossegue o Christe eleison, em total contraste, não só no plano dinâmico, como pela circunstância de ser a capela.

Desenvolve-se o Glória no quadro tradicional - alternando trechos corais e solísticos, estes de grande virtuosidade - traço que se instala em sua linguagem nas missas posteriores a 1810. O Gloria in Excelsis Deo – de procurado brilhantismo – não é original nem especialmente belo, com os 27 compassos de introdução instrumental. Explode com violência e tende a assumir o caráter de uma fanfarra. Esses compassos precedem a entrada do coro, sobre o mesmo motivo. Acompanhadas por duas flautas, as vozes solistas fazem-se ouvir em harmonias escolhidas no Et in terra, em atmosfera de grande tranquilidade, que o retorno do coro envolvido em harmonias cromáticas não perturba, sempre em pianíssimo. Este, o quadro que antecede o retorno ao Gloria in excelsis, procedimento que José Mauricio adotou em quase todas as missas. [11]O sinal de retorno, na Missa de santa Cecilia, está marcado para o inicio da introdução instrumental do Glória, o que se procurou evitar, transferindo-o para a entrada do coro. Medida apoiada em autógrafos de missas importantes 1810 (Conceição), 1813 (Missa pequena) e 1818 (Missa do Carmo). Nesses três casos, os compassos de introdução foram excluídos no retorno.

A continuação do Glória inclui, paralelamente aos trechos Corais, todos de surpreendente naturalidade na escritura, e profundeza na expressão religiosa, momentos de brilho vocal, para os quais foram previstos cantores da Capela Real e amigos do compositor.

O primeiro desses solos - o Laudamus para soprano - é ária brilhante e bela. Construída em dois movimentos contrastantes, a virtuosidade, tanto quanto a expressividade que exige a página, não deixa afastada a ideia de que só poderia caber a um dos castratti dos tempos áureos da Capela Real, cantor de excepcionais dotes. A ária exibe todos os recursos peculiares à literatura para o tipo de voz a que se destina: volatas, trinados, pichiettati e grande agilidade. Não louva uma só vez, não adora, não glorifica apenas uma vez; a autêntica força da criação musical nela está, porém, presente.

O Gratias contrasta com os demais que a pena de José Maurício deixou sobre esse texto; não é possante, mas expressão agradecida, e humilde, num andantino de linguagem simples que só alcança exaltação quando o texto atinge"magnam gloriam tuam".

No Domine Deus o quarteto vocal responde com serena majestade pelo trecho, repetindo a preferência de José Mauricio no confiar a conjunto solístico – no caso, de execução nada fácil – a sua realização.

O trecho seguinte – Qui Tollis, grande concertante de tenor solista e coro –  é demonstração de virtuosidade do cantor cujo nome vem lançado na partitura: Gabriel Fernandes da Trindade.

O Qui sedes é um trecho coral quase amável, que se coloca entre duas árias de grande envergadura. O Quoniam, valente ária destinada ao baixo solista, representa talvez o trecho de maior responsabilidade vocal, na obra, e foi destinada ao famoso cantor João dos Reis Pereira. Ao compô-la para o seu fiel amigo – em 1826 possivelmente já não mais e condições tão excepcionais para vencer as dificuldades de determinadas passagens (compassos 41-42, 72-73, 115-116, que atingem tessitura de tenor – sol 3, lá bemol 3) – José Maurício assinala, na partitura: "em falsa". Seriam pois cantadas em falsete essas passagens onde outrora a voz de João dos Reis brilhava, como deslumbrava no seu belo registro de baixo. Precaução de compositor, para não comprometer a realização artística do autêntico suspense que significa esse momento no decorrer da ária, em que os vocalises representam outro aspecto de dificuldade técnica, nada fácil de vencer. Marcada vigorosamente a entrada do solo, logo em seguida o texto é repetido com outra temática, em dolce, apoiada nos pizzicati dos contrabaixos, violoncelos e uns poucos instrumentos em pianíssimo. Apesar do ímpeto que a atravessa de quando em vez sempre que retorna o motivo inicial, a ária do baixo, com os seus vocalises e momentos de doçura, é predominantemente tratada em piano e pianíssimo.

O final do Glória representa um desses momentos felizes na pena de um compositor. Referência não dirigida ao allegretto final, este de caráter até certo ponto aligeirado, mas nos sessenta compassos iniciais do trecho, desde a introdução instrumental (só madeiras), deixa transparecer a provável intenção do velho organista: evocar o som da ‘serafina’[12]. Resulta verdadeiramente comovente o depoimento da imaginação do compositor nesse ato de reminiscência, complementado por uma grande página coral, sobre o texto do Cum Sancto Spiritu. Como ocorre em outros momentos dessa obra, o motivo do andante Sostenuto parece tê-lo perseguido por vários anos. O exemplo mais próximo é o da Missa de 1823, sobre o mesmo texto.

O Credo representa, na Missa, a parte de criação em que, apesar de páginas de profunda beleza e recolhimento, apontam prováveis sinais de falta de tempo suficiente para terminar a obra no prazo previsto. O sinal mais evidente é a repetição do mesmo motivo em momentos diversos: o do início do Credo - no Deum de Deo; e o do Gloria in excelsis no Et resurrexit e nos vários textos que o sucedem: Cujos regni e Et vitam venturi. Por outro lado, o Pleni sunt está construído sobre a temática do allegretto do Cum Sancto Spiritu. Tais repetições resultam em limitar um pouco o interesse musical desses trechos. Os últimos compassos do Patrem omnipotentem (allegretto) preparam, desde o piano súbito nas madeiras o ambiente harmônico o início de trechos do maior valor musical: Et incarnatus e, a seguir, Crucifixus.

A concepção do compositor para o Et incarnatus opõe-se de certo modo ao que sempre norteou sua imaginação e religiosidade. O sentido dominante é o de angústia expresso no andantino agitato que o compositor emprega na indicação de movimento e de caráter do trecho; acrescenta, porém, a indicação dinâmica: "sempre ligado e pianíssimo". Não se opõem as duas expressões. Será, realmente, uma agitação interior a que moveria intimamente o compositor diante do texto, e explica o profundo sentido desse belo fugato confiado às vozes solistas e duplo quarteto de madeiras, combinação vocal e instrumental única em sua obra.

Desenvolve-se o ambiente musical do Et incarnatus no sentido da melodia contínua que o traçado impreciso das ligaduras acentua, entrelaçando as frases  umas nas outras. Somente as pausas, e a fermata no compasso 30, parecem pôr um termo provisório antes que recomece a angústia, até o compasso 53, quando o prolongado uníssono das vozes, sobre o Et homo factus est, anuncia o fim do trecho, que se dissolve progressivamente em sucessivas harmonias de sobretônica. A estranha sucessão de dissonâncias de passagem entre as vozes e as madeiras, as appoggiature harmônicas que se integram na melodia, ou simultâneas com a nota real, surpreendem em todo trecho, especialmente no compasso 18, onde o choque entre retardo (com o valor total de um compasso) simultâneo com a nota real justificaria antecipar-se a resolução da dissonância (clarineta e tenor). Aspectos discutíveis do contexto que recomendariam a reprodução do autógrafo.

No trecho seguinte, Crucifixus, o coro em uníssono enquadra-se na moldura betoveniana que lhe advém dos acentos trágicos e incisivos do grupo das cordas. Ambiente que faz pensar no que diz Maurice Brown a respeito do mesmo trecho na Missa em Mi bemol, de Schubert, quando se refere aos trêmulos nas cordas: "Evocam uma espécie de trêmulo horror" à cena do Gólgota[13].

Único trecho, embora reduzido em proporções, mas desdobrado em oito vozes corais, o Sanctus foge ao padrão vocal e instrumental que caracteriza o seu tratamento em outras missas do compositor – no geral mais serenos, mais para o piano e moderato – e apresenta-se tendendo ao grandioso, nos seus 11 compassos. Retorna o motivo do allegretto final do Glória para o Pleni sunt.

Cabe aos solistas expor o Benedictus curto e recolhido, procedimento habitual de José Maurício na interpretação desse trecho. Há exemplo de Benedictus com cinco compassos (1808). O de 1826, de profundo intimismo, com quarteto solista, tem dez compassos. Nele não ocorre repetição de texto.

Em grande tranquilidade termina a Missa de santa Cecilia com as vozes solistas e as do coro alternando-se entre acentos de resignação e anseios de paz. Evolam do Agnus Dei e representam acertos nas mãos desse compositor já envelhecido e cansado aos 58 anos, que assiste à proximidade do seu fim cercado de tristeza e amargura, mas que terá encontrado, na composição da Missa de santa Cecilia, uma das últimas alegrias que lhe foram concedidas antes de apagar-se.

 

 

[1] Um pouco de especulação em torno do solista do Laudamus concentra nomes de dois castrati: Antonio Cicconi ou Giovanni Fasciotti. Estrela de primeira grandeza no panorama musical da cidade, onde atuava desde 1817 na Capela Real tanto quanto no Real Teatro S. João, Fasciotti tivera regalias econômicas superiores às de Marcos Portugal, mas perdera privilégios no império. D. Pedro limita seu fabuloso ordenado. Por outro lado, uma referência histórica deixa em evidência o relacionamento pelo menos pacífico entre o cantor e o compositor. Este acompanha Fasciotti em noitada musical, na casa do marques de Santo Amaro, na qual o cantor fora freneticamente aplaudido. Antonio Cicconi, músico sério, já fora solista em obras de José Maurício. Quanto ao "Sr. Augusto" (provavelmente A. Cesar de Assis), nome do soprano escolhido para o Domine Deus, pode não ter sido o cantor a quem coube fazer o difícil solo do Laudamus, assim como o tenor do Domine Deus (Cândido Inácio da Silva) não fora encarregado do solo do Qui tollis, nem o baixo Apolinário fizera o do Quoniam.

[2] Augusto Cesar de Assis (soprano) já fizera solo em outras obras de José Maurício; integrava o quadro da Capela Real.

[3] Luiz Gabriel (Ferreira de Lemos) seria falsetista, e não castrado; o que explica não haver solo de virtuosidade para essa voz, apenas breve passagem, no Confiteor.

[4] Cândido Inácio da Silva (1800-1838). "Estatura baixa, magro, rosto e corpo comprido, pouca barba", era aluno de José Maurício, foi músico notável, tenor e compositor.

[5] Apolinário (Antonio Joaquim?) pouca informação além de ser mandado "tirar da folha" da Capela Real em 1813.

[6] Gabriel Fernandes da Trindade era autor de modinhas consagradas, muitas das quais impressas por P. Laforge. Foi cantor da Capela Imperial. Dele disse o inspetor: "E um perito na arte da música, tem excelente voz".

[7] João dos Reis Pereira (Minas Gerais, 1782, RJ 1853) terá sido, à época, o mais bem dotado dos cantores brasileiros ouvidos por D. João VI, que soube reconhecê-lo e recompensá-lo. Atuou no Teatro de Manoel Luiz antes de 1808, cantou na Real Capela, e no Real Teatro São João. Muitos solos de José Maurício foram escritos com base nas possibilidades técnicas desse cantor. João dos Reis Pereira sobreviveu de muito ao seu glorioso período de cantor, e exerceu várias atividades: 'diretor' de música em conjuntos que atuavam em igrejas; procurador da Irmandade de Santa Cecília. Foi excelente copista.

[8] Livro com termo de abertura assinado por Leopoldo Miguez em 2 de janeiro de 1891, interrompido e reencetado em 28.1.1916. Nesta fase a coleção Bento das Mercês principia a ser registrada.

[9] Iniciativa que se deve ao provedor da mesma Irmandade, Sr. Júlio Cesar de Oliveira (Jornal do Comércio, jun. 1898).

[10] A audição em que se restituiu à obra o título tradicional ocorreu já no século XX, a 7 de setembro de 1959, com a Orquestra Sinfônica Brasileira, coro da Associação de Canto Coral e solistas sob a direção de Edoardo de Guarnieri. Audição gravada em disco Funarte em 1983 (Coleção Documentos da Música Brasileira, v.15- MMB 82.024/25).

[11] Não é constante o momento desse retorno após o Et in terra (1808-1810); após o Quoniam (Carmo, 1818) após o Qui tollis (Mimosa, 1820). Duas missas não o tem: São Pedro de Alcântara (1809) e a Missa para 2 de fevereiro (s. d.).

[12] Nome dado a pequenos órgãos no interior do Brasil.

[13] Alan Blyth, comentário em disco London -31C, 067-60660.